UM LIVRO MUITO LIDO
Hoje, inadvertidamente,
peguei um livro de poemas
que eu antes costumava ler
lado a lado com alguém.
E a presença dela se fez
de novo tão forte naqueles
textos meio adolescentes
que não consegui entender
nem mesmo o menor deles.
É que aquele livro a reteve
nas muitas marcas de dedos
de mãos suadas e trêmulas
que, sem poder parar o tempo,
apenas folheavam poemas.
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DUETO
Em silêncio nós dois lavamos a louça
depois de mais um almoço de domingo;
nossa filha brinca no computador,
a tarde é quente e não traz alívio
observar as nuvens tão indiferentes
ao que somos e ao que de nós sobrou.
Despejo detergente na buchinha
e vou esfregando pratos, talheres,
panelas, tampas e um escorredor.
As louças da época do casamento
trazem cantos lascados e riscos
de facas que cortaram nosso alimento.
Um jogo novo de jantar, de porcelana,
dorme no armário, meio esquecido.
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Quase não o usamos, não por raiva,
apenas por não haver curiosidade
de provar coisas sem as marcas
dos dias que, perdidos, são tão nossos.
Do almoço em que você tanto se esmerou
e que em poucos minutos devoramos
restou apenas sujeira, esses detritos.
Despejo mais detergente na buchinha
e esfrego com fúria, não desisto.
Na cuba da pia, no olho do ralo,
acumula-se uma camada de restos.
Grãos, pedaços de carne e de cebola,
folhas verdes e o recente caco de louça
tirado de um prato contra o granito.
Não nos olhamos neste domingo,
dia de folga – mas não se folga
no finito ofício de estar sendo.
Cuidamos da louça, você a enxuga
e nossas mãos então se cruzam
sobre o escorredor transbordante
de coisas úmidas, limpas e lascadas.
Esta é a nossa vida, a nossa casa.
Poderíamos estar felizes com isso
e talvez até estejamos, lá no fundo.
E afundo as mãos na cuba e retiro
uma faca ainda muito engordurada
como nossa alma já sem brilho.
Quando não restam mais louças
para que nelas possamos exercitar
um desejo frustrado de limpeza,
quando tudo volta ao armário
nós nos sentamos na varanda
e damos as mãos como namorados
– mãos macias, brancas e enrugadas
do muito tempo expostas à água,
mãos talvez livres de seus pecados. |